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ode à Isabel

Quando enxerguei a casa, de longe, assim, surgindo no meio do verde, os riscos das tábuas foram se tornando mais nítidos, à medida em que eu me aproximava. A grama crescia ao redor com tanta naturalidade e entonação que nada ali estaria fora da ordem ou do lugar: o pé de manga, a madeira resistente ao tempo e às águas, as pequenas janelas calculadas, a batente da porta, o desenho da planta da casa. Mas, da paisagem inteira, o fogão construído em tijolo foi, de tudo, a peça mais sagrada daquela visita.

Usado por décadas pelas mãos de Isabel, foi construído pelos dedos de meu pai em algum momento perdido no passado. Talvez estivesse lá desde a colocação das últimas tábuas. Difícil seria calcular. Ali, tantas e tantas vezes os dedos de Isabel despejaram o sal, mexeram em círculos o caldo na panela. O sabor do tempero, o sal caindo de seus dedos presenciei, quantas e quantas vezes...

Como num ritual, dividido o caldo em dez, comíamos, voltando correndo pra terra, fosse para brincar entre a plantação ou para fincar a pá na lavoura. Partíamos, cada qual em um estágio diferente de vida, enquanto Isabel nos olhava do batente da porta, a mesma porta na qual eu entrava naquele momento, 40 anos mais tarde. Isabel carregou em seu ventre todas as dez vidas que corriam em sua direção.

Em seu ventre repousei e ali foi meu primeiro repouso de vida. Quarenta anos mais tarde, vi o corpo de Isabel circular pelo mesmo cômodo. Pude ver seu rosto pensativo mexer a panela, ouvir sua voz melódica cantar qualquer coisa afinada, reproduzida ou inventada. Pude sentir seu cheiro, vê-la usar o vestido, a saia, vê-la com seus cabelos escuros emoldurar um riso alegre e poderoso.

Isabel era minha mãe. Isabel e, por ela, a capacidade de não esquecer do passado é como mantê-la viva; ela, Isabel, que desapareceu pouco a pouco quando as memórias se foram.

Elizabeth Bishop diz que "a arte de perder não é nenhum mistério, tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las". E mesmo perder Isabel não foi nenhum mistério, nenhum acidente.

Pra a falar a verdade, Isabel é do tipo que nunca se perde, se esquece ou deixa de amar. Isabel continua aqui.

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